Texto autoapresentação

AUTOAPRESENTAÇÃO
Marcos Rey
Eu nunca fui criança. Quanto tinha uns 20 meses ouvi meu pai dizer que os tempos eram bicudos, e isso estragou tudo. Mas me lembro do quintal noturno em que, sentados em degraus de cimento, o velho me contava hisórias das Mil e uma noites. Era uma rua pobre com fundos para uma rua rica,.Imaginem, atrás de minha casa morava uma baronesa. Nas noites de calor, um perfume saltava o muro plebeu do encadernador de livros, que meu pai era. Devia ser jasimim-do-cabo, tão bom de ser respirado,que eu o aguardava e procurava pelo quintal, durante todo o verão. Para mi, que já sabia das diferenças sociais, não era apenas uma fregrância vegetal mas o cheiro das coisas e do mundo da baronesa seprado de nós por um muro muito alto.
Acho que esse muro, separando duas casas e dois universos, ligados apenas por um ocasional perfume de jasmim, materializou cedo demais a realidade. Não obstane, porém, a imaginação. Fiz um esforço, teria de fazê-lo. Certa manhã, coloquei uma cadeira sobre uma mesa e encaixando o pé numa saliência do muro, arranhando as mãos, espiei - eu consegui - durante um instante a casa (já castelo) da baronesa. Meio século depois a cena ou fotograma não se deteriorou. O quase não visto era um gramado batidíssimo de sol, sobre o qual uma menina loira, poucos anos, corria atrás dum cachorrinho branco sob a vigilância duma governanta, que gritava algum nome terminado em i, não soube se da garota ou do cão.
Depois... depois, nada. Nem sei ou lembro popor causa do perfume que contei, Fanny, essa lembrança de baú. Talvez por causa do perfume de jasmim-do-cabo e o gramado da baronesa, o que vi e aspirei da infância, o que restou dela, pois em tempos bicudos, as crianças já nascem velhas. É o que deve estar acontecendo agora, principalmente no Brasil.
Quando escrevo meus infantis é o que me pergunto: se escrevo para o menino sobre o muto, o espião da manhã ensolarada, ou se para a menina loira do cenário da baronesa. A que lado do muro estou como escritor e oa que lado estão os outros que escrevem?
Mas isso é uma autoapresentação? Acho que não. Apresento-me, pois. Sou um escritor que gosta de cachorros de raça, foxes-blues e cereja de Martinis. Não tenho filhos porque quem escreve para crianças precisa de silêncio em casa. Para escrever, sento e escrevo. Às vezes, porém, fico de pé e escrevo. Sou machista romântico. Meu maior sonho era ter um harém, cercado de eunucos, todos do PDS 9hoje PP, DEM). Mentira que escrevo tamb´me para adultos. Memórias de um gigolô e O enterro da cafetina escrevi para crianças do futuro. Mas não faço a cabeça delas.; vendo-lhe emoções.
Currículo? Fui redator de rádio, publicitário (reclamista), jornalista, famoso roteirista de pornochanchadas (33), escrevi de tudo na TV, fui inclusive ghost-writer de telenovelistas consagrados, e no merchandising vivo de marca de lençol. E sou aposentado por tempo de serviço. Mas a máquina e a mesa (o quarto todo, a casa toda) só vibram quando deixo de escrever para muitos para escrever para poucos: livros.
Mais? Ah, detesto coalhada.
REY, Marcos. In O mito da infância feliz, organizado por ABRAMOVITCH, Fanny, São Paulo, Summus, 1993, apud CHAMADOIRA, João Batista e RAMADAN, Maria Ivoneti B.Língua Portuguesa:pensandoe escrevendo, Atlas, 1994. pp.11-12.

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